Por Diana Joucovski – ex-aluna da Ítalo, formada em 2019 no curso de Artes Visuais
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Não ter tido ao menos uma aula de desenho livre durante o ensino fundamental é como nunca ter pegado catapora: em algum momento, até a sua formatura, vai surgir um professor de arte com a alternativa mais fácil para manter a turma ocupada sem esforço nenhum, e você não vai escapar como não se escapa da catapora. Você, pequeno gafanhoto, que talvez tenha uma certa inclinação para as artes visuais, vai pensar “perfeito, minha hora de brilhar!” e sair defendendo aos seus colegas que até que o desenho livre é legal, que é bem melhor do que ouvir sobre esculturas feitas nos tempos da sua bisavó e, afinal, é uma chance de se expressar livremente.
Esse argumento também era utilizado pela galera que desenvolveu o movimento da livre expressão, lá na Europa e Estados Unidos no final do século XXI. Eles tinham como foco o processo (como você faz arte) e não o objetivo e o resultado (por quê e para quê você faz arte), porque estavam exaustos de tantos séculos de ensino tradicional, e encontraram no extremo oposto uma nova maneira de lecionar. Aqui no Brasil, esse modelo de livre expressão chegou junto com o movimento da Escola Nova, em 1930, alguns anos depois da Semana de Arte Moderna. Você deve se lembrar da Semana de Arte Moderna, não? Aquela semana de arte sediada em São Paulo, no Theatro Municipal em 1922, que revolucionou a arte brasileira e criou uma identidade para a arte nacional? Que tinha até a pintora do Abaporu, a Tarsila do Amaral? É essa mesma.
Mas vamos com calma – quero te fazer algumas perguntas. Você sabe o que deveria ter aprendido ou estar aprendendo nas suas aulas de arte na escola? Já ouviu falar nas quatro linguagens da arte, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, em Ana Mae Barbosa? Sabe que seu professor pode ser orientado pela proposta triangular? Entende um pouco sobre o ensino tradicional, tecnicista e de livre expressão? De acordo com a pesquisa qualitativa que fiz para desenvolver meu trabalho de conclusão de curso em Artes Visuais, há boas chances de que você não faça a menor ideia do que eu estou falando.
Os documentos que tenho em minhas mãos agora são a Base Nacional Comum Curricular, (2017), os Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte (2000) e meu artigo científico sobre a arte-educação no atual ensino médio (2019), que obteve nota máxima em produção e apresentação. Para que esses três documentos pudessem ter sido criados, houve uma lei que incluiu a arte como disciplina obrigatória na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e uma mulher incrível que fundamentou os pilares essenciais para as aulas de arte no Brasil, chamada Ana Mae Barbosa.
Ana Mae Barbosa. Foto: Reprodução
No princípio era o tradicional, e o tradicional estava na Europa, e a Europa era soberana. A figura do professor era a de um mestre autoritário e dotado de todo conhecimento; o aluno considerado bom era aquele que suprisse os critérios técnicos e estivesse mais dedicado a copiar do que a criar. A poética pessoal, termo que hoje reconhecemos como o modo singular de nos expressarmos na arte – nossas emoções e nossa individualidade – não era valorizada, e sim a reprodução fiel e a utilização dos modelos europeus. Era um ensino de arte inclusive elitista, já que apenas essa forma de produção era tida como autêntica, ao passo que a arte dos indígenas e da classe baixa (sem acesso à educação) era denominada “artesanato”.
“Mas Diana, isso não é novidade para mim”, você diria, “meus professores de arte criticavam esse modelo o tempo inteiro”. Eu imagino, até porque estamos mais distantes do ensino tradicional (cronologicamente) do que da livre expressão e do tecnicista. E essa preocupação com técnica, precisão e organização dos trabalhos realmente dá muito trabalho, por esta razão, é mais viável para o educador contemporâneo ceder ao aparente exercício de liberdade criativa na aula de arte ou aos padrões geométricos e a cópia disfarçada de releitura.
No Brasil, após séculos de ensino tradicional, fomos direcionados ao extremo oposto da livre expressão e logo condicionados à arte para o trabalho nas fábricas. Enquanto que a livre expressão, à sua maneira, estimulava nossa criatividade e subjetividade, apesar de não nos garantir técnica e objetivo algum na realização do trabalho artístico, o ensino tecnicista vinha inspirado no tradicional em 1970 para nos “preparar” para o mercado de trabalho através da repetição e reprodução de padrões. Era a época em que seus pais aprendiam que ser bom aluno é ser passivo como o professor deve ser, pois o que regia a todos era uma tecnologia educacional que não se importava com o contexto social no qual vivam. Ou quem eles eram. Ou o que eles queriam.
Foi somente na década de 1980, há quarenta anos, que uma professora brasileira se inspirou em referenciais estrangeiros e pensou uma proposta (ou abordagem) que ajudaria a mudar um pouco o sistema das aulas de arte. Essa proposta triangular, baseada em três processos inter-relacionados, é utilizada hoje como referência no ensino brasileiro de arte em todas as etapas da educação básica. Ana Mae Barbosa criou algo relativamente simples: um momento para fruir, que seria a divagação de suposições sobre a obra e o diálogo como debate; um momento para contextualizar, quando o professor (hoje interpretado como mediador, ao invés daquela figura autoritária sobre a qual falamos) explica o contexto histórico, social e visual da obra; e um momento para produzir, através da expressão artística escolhida, utilizando-se da poética pessoal e criatividade do aluno. Uma produção equilibrada que visa tanto o processo quanto a finalidade da obra, o que naquela época era uma novidade.
Se recorda de já ter tido uma aula assim? Um momento para diálogo, um momento para explicação e um para produção, não necessariamente nessa ordem? Marque um X nessa pergunta e você terá aprendido arte à la Ana Mae Barbosa. Quanto ao conteúdo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Arte orientam os professores a abordarem as quatro principais linguagens: a Dança, a Música, o Teatro e as Artes Visuais. O ideal para que o aluno saia da escola com uma boa educação em arte é ter fruído, contextualizado e praticado dentro dessas áreas, sendo uma arte visual que vai do desenho até a fotografia e a escultura, é claro. Quanto mais expressões artísticas exploradas melhor, o problema é que muitos saem, pela defasagem do ensino no Brasil, com uma experiência básica em Artes Visuais, um pouco no Teatro e nada ou quase nada em Dança e Música.
Dança, segundo minha pesquisa qualitativa que entrevistou cem alunos de diversas cidades do país, é a última linguagem a ser ensinada na aula de arte (87% dos alunos e ex-alunos não tem/tiveram). O PCN já refletia isso em 2000, ao dizer “o ensino de dança pouco existe, a não ser quando integra programas de Artes Cênicas ou até mesmo de Educação Física”. Durante minha experiência de estágio, pude ouvir o mesmo de um dos meus orientadores que se recusava a lecionar mais do que a arte visual: “Eu deixo Dança para o professor de Educação Física, ele que ensine. Eu não tenho formação para isso”, ele me disse.
Bem, meu pequeno gafanhoto, você deveria ter aprendido sobre a Dança na escola. Os cursos de licenciatura em Artes Visuais preparam o educador para trabalhar todas as linguagens de arte e explorá-las, em aulas práticas e teóricas. Botamos a mão na massa com esculturas, montamos peças teatrais, dançamos mesmo envergonhados com dinâmicas que nos fazem perder a vergonha (lembranças à professora Thaís Hayek). O desenho e a pintura nas aulas de arte precisam ir além e não se limitarem à cópia. Você tem certeza de que fazia (ou faz) releituras? Quando eu estava no ensino médio, cheguei a discutir com uma professora que nos fez copiar o quadro Abaporu variando apenas as texturas; em um fazíamos linhas retas, em outro bolinhas. O quanto de liberdade você tinha ou tem na criação das suas releituras?
O desejo de conhecimento em arte e produção artística não devem iniciar no instante em que você pisa na sala de aula e acabar no instante em que sai. Você precisa ser incentivado a não achar a visita ao museu a coisa mais chata do mundo, a compreender o valor da arte e a profissão do artista como um ofício digno e fundamental, fruto de um trabalho dedicado. Precisa expor seus questionamentos: por que é que eu devo me importar com o quadro que alguém fez há tanto tempo? Por que eu devo acreditar que uma banana com fita adesiva na parede é arte? O que define arte, então? E se eu achar que isso aqui é arte mas aquilo ali não é, por que minha opinião não importa?
A arte é inerente ao ser humano, Barbosa nos afirma com esse lema para a arte-educação: arte não é só para uma parcela de ricos e intelectuais, se todos nós nascemos cantando, interpretando e dançando. A arte nos deve ser ensinada como algo acessível, não distante e abstrato; que nunca é, mas sempre está. Estava de uma determinada maneira no período renascentista, transformou-se noutra coisa no período barroco e voltou a se inspirar na Renascença no período neoclássico, para mudar completamente durante o impressionismo. Hoje é a máxima expressão de liberdade em si mesma: um quadro de pontilhismo que demorou cinco anos para ser feito é tão arte quanto um mictório virado de cabeça para baixo intitulado “A Fonte”. O que ainda está em deficiência é a democratização do conhecimento de arte e a visibilidade da produção artística que ocorre fora da nata intelectual dominante, que, embora não possua mais o direito de definir o que é arte, apodera-se de mecanismos para que sua arte seja reconhecida acima de outros artistas.
Ana Mae Barbosa foi aluna de Paulo Freire e a primeira brasileira com doutorado em arte-educação, pela Universidade de Boston. Cursou Direito em Pernambuco, e na sua época sofreu preconceito por ser uma das oito mulheres num curso que envolvia 200 alunos. Segundo ela, esse preconceito partia dos professores, que consideravam que as mulheres no curso de Direito só poderiam estar lá por serem amantes de alguém. “A maioria deles era brutalmente machista”, ela conta à uma entrevista para o Sesc, “eu brincava com meu marido, com quem fui casada por 47 anos, eu brincava com ele dizendo que começara a namorar com ele para me proteger”. Além de uma grande educadora no nosso país, Ana é uma vitória para as mulheres na academia.
E por que não ouvimos falar em Ana Mae Barbosa na escola? Se não ouvimos sobre ela, muito menos será ouvido sobre Miriam Celeste, Maria Heloísa Ferraz e Maria de Resende e Fusari. Quando estava no ensino médio, influenciada pelo espírito crítico das aulas de Filosofia e Sociologia, eu vivia questionando “Por quê? Por que eu tenho que aprender isso e não aquilo? Por que não pode ser diferente?” e as respostas que recebia dos professores era semelhante e sempre a mesma. Eu era rebelde porque não queria copiar o Abaporu, não fazia a atividade de desenho livre e escolhia pintar com menos ou mais intensidade sobre o papel. Minha mão é leve desde pequena, por isso meu músculo do braço doía para pintar com a força que minha professora da primeira série mandava e eu não entregava o trabalho como ela gostaria. Lembro do meu esforço para pintar cada pedacinho até tudo estar milimetricamente preenchido, sem objetivo aparente.
Os alunos da educação básica não precisam decorar certas leis da educação, saber as linhas de pensamento na Pedagogia e invocar nomes de grandes educadores. Eles podem obter somente uma ideia sobre o quê e por quê estarão sendo educados de tal modo, para que não corram o risco de achar que a prática do desenho livre possa ser benéfica (como acreditava uma menina ao responder minha pesquisa) ou confundir uma cópia de uma releitura, especialmente os alunos do ensino médio, que possuem seu senso crítico melhor desenvolvido. Como fazer arte, por quê fazer arte, quais as linguagens da arte e a importância dela em suas vidas pessoais e sociais são questões a ser discutidas num processo de mediação, em favor do esclarecimento sobre o que deve ser ensinado e absorvido.
A arte nos é inerente, mas precisa ser trabalhada na escola – como escrevi para um tópico no meu artigo científico sobre arte-educação. Essencial no currículo escolar, por desenvolver a percepção e a imaginação, ensinar a realidade do meio ambiente e desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao aluno analisar a realidade percebida e usar a criatividade para mudar essa realidade (BARBOSA), ela deve ser trabalhada em equilíbrio entre teoria e prática, professor e aluno. O aluno, ou seja, você, tem o direito questionar, buscar entendimento e aprender ferramentas para se expressar artisticamente dentre as quatro linguagens principais. Uma arte heróica é aquela que pode ser produzida por todos, para todos e com liberdade, senão é nada além de uma covardia.
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Referências Bibliográficas
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Versão 3, Brasília, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
BRASIL. Ministério da Educação e Desporto: Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC, 2000. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf
BRASIL. Leis de Diretrizes e Bases, 1996.
SESC. Entrevista com Ana Mae Barbosa, 2019. https://www.sescsp.org.br/online/artigo/13216_ENTREVISTA+COM+ANA+MAE+BARBOSA
Eu adorei a entrevista. Pude conhece la mais.ontem fiz prova sobre ela fui muito bem. Para nós futuros docentes e uma alegria poder te la na Educação Infantil.
Sempre acreditei da possibilidade de cresce,criar dar sentido naquilo que eu posso criar,falar em um desenho livre não mas sim por sua imaginação dar sentindo naquilo que vc está fazendo isso nossa autor tem passado saber ensinar o certo,