Mercador de Veneza, uma das obras mais complexas e debatidas de William Shakespeare, é tema do nosso sétimo artigo da série “em poucas palavras”. Neste ensaio, Joseph Pearce examina como essa peça, frequentemente classificada como comédia, tem sido mal interpretada a ponto de ser vista como uma tragédia. A narrativa se desenrola através de três testes morais – os caixões, o julgamento e os anéis – que exploram a virtude do amor abnegado e a necessidade da misericórdia. Pearce também aborda a controversa figura de Shylock, questionando as acusações de antissemitismo e destacando a importância de entender a peça no contexto cultural e religioso da época de Shakespeare.
Joseph Pearce, Crisis Magazine | Tradução: Equipe Instituto Newman
A Cegueira Crítica Moderna
O Mercador de Veneza talvez seja a maior e, sem dúvida, a mais polêmica das comédias de Shakespeare. No entanto, ela foi mal compreendida e mal interpretada a tal ponto que muitas vezes é vista como uma tragédia, não como uma comédia. Essa é a cegueira crítica da época em que nos encontramos. Antes de discutirmos essa cegueira crítica e as razões para ela, vamos dar uma olhada na peça em si.
Análise dos Testes Morais
O Mercador de Veneza é uma comédia deliciosa e tensa, centrada na necessidade do amor abnegado. Em termos de sua forma, ela funciona de duas maneiras distintas, que podem ser percebidas visualmente como o movimento horizontal do enredo e o movimento moral vertical entre os preceitos virtuosos de Belmont e a maldade venal de Veneza.
Com relação ao movimento horizontal da trama, ela tem três “nós” focais distintos, cada um dos quais é um teste moral: o teste dos caixões, o teste do julgamento e o teste dos anéis. Em cada caso, a aprovação no teste significa um movimento para o céu, ou seja, saindo da cidade do homem (Veneza) em direção à cidade de deus (Belmont).
O Teste dos Caixões
O objetivo do primeiro dos testes é ganhar a mão da celestial Pórcia em casamento. Pórcia, herdeira do misterioso reino sobrenatural de Belmont, não pode ser conquistada em casamento por aqueles que valorizam o ouro ou a prata, mas somente por aqueles que abraçam o caixão de chumbo, que significa a própria morte. Para ser digno do virtuoso amor da virtuosa Pórcia, é preciso estar disposto a morrer para si mesmo, de modo que se possa dar a vida pela pessoa amada.
O Teste do Julgamento
O segundo teste é o teste do julgamento, ou o teste de Shylock, no qual Pórcia, disfarçada de advogada, se esforça para persuadir Shylock a abandonar sua exigência de vingança. E, em vez disso, abraçar a necessidade de demonstrar misericórdia para que ele possa receber misericórdia. Seu discurso sobre “a qualidade da misericórdia” é um dos mais belos monólogos que Shakespeare já escreveu. Sua beleza e moralidade foram muitas vezes eclipsadas pela leitura crítica equivocada da peça. Mas falaremos mais sobre isso em breve.
O Teste dos Anéis
O teste final, o teste dos anéis, é feito por Pórcia para testar a fidelidade de Bassânio, que ganhou a mão dela em casamento por ter escolhido o caixão de chumbo. Ele é fiel à sua palavra? Será que ele realmente dará sua vida por ela, abraçando o vínculo abnegado do sacramento do casamento, representado pelo anel que Pórcia lhe deu?
Pórcia, ainda disfarçada de advogado, o convence a se desfazer do anel, ilustrando sua fraqueza e sua falta de vontade de ser fiel ao seu vínculo. Ela, depois de expor a infidelidade e a fraqueza de Bassânio, não o condena, mas o perdoa em um ato de misericórdia, em total contraste com o vingativo Shylock, que se recusou resolutamente a demonstrar misericórdia e perdão a Antônio na cena do julgamento. Nesse teste final, portanto, Pórcia demonstra estar praticando o que pregou no belo discurso sobre a “qualidade da misericórdia”.
A Interpretação Modernista
Depois de examinar o enredo de O Mercador de Veneza em sua totalidade e integridade panorâmicas, podemos ver como ele foi terrivelmente mal interpretado pelos leitores modernos que transformaram a comédia dos três testes na “tragédia de Shylock”. Enquanto a virtuosa Pórcia está presente e desempenha um papel crucial em todos os três testes que formam os pontos centrais da peça, Shylock está presente somente no segundo deles.
Shylock: Vítima ou Vilão?
Assim, comparado com Pórcia, Shylock é periférico. Como esse é claramente o caso, podemos nos perguntar por que ele roubou o show da heroína celestial. A razão está no suposto antissemitismo do qual ele é visto como vítima. Ora, para livrar a peça e seu autor da acusação de antissemitismo, precisamos enxergar O Mercador de Veneza através dos olhos de Shakespeare e de seu público contemporâneo. A primeira coisa a entender é que Shakespeare e seu público teriam tido muito pouco contato com judeus na vida real, pois os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra durante o reinado de Eduardo I, trezentos anos antes.
Por outro lado, os únicos agiotas que praticavam a usura na Inglaterra elisabetana eram os puritanos, sendo a prática da usura condenada pela Igreja, mas tolerada por João Calvino. Como era ilegal apresentar questões políticas e religiosas contemporâneas no palco, não era possível para Shakespeare representar seu vilão usurário como um puritano. Ele faz isso sub-repticiamente, contornando a censura da época, ao apresentar seu vilão usurário como sendo ostensivamente judeu.
O Contexto Cultural e Teológico
Desse modo, a máscara alegórica teria sido percebida por seu público como um eufemismo mal disfarçado para os agiotas puritanos que estavam se tornando muito impopulares na Inglaterra elisabetana. Como os puritanos também se opunham ao teatro e acabariam conseguindo fechar todos os teatros da Inglaterra, Shylock teria sido insultado pelo público — mas não como judeu.
Tendo dito isso, deve-se observar também que o sentimento antijudaico na peça não é racista, mas econômico e teológico. Em primeiro lugar, uma leitura atenta ilustra que Shylock é odiado principalmente por sua prática de usura e não pela prática de sua fé. Na medida em que o judaísmo é mencionado, ele é considerado em termos religiosos, não raciais.
Perspectivas Religiosas e Raciais
Os judeus são vistos como errados em sua recusa em aceitar a divindade de Cristo, uma perspectiva teológica honesta que não constitui antissemitismo. Ora, quando a filha de Shylock, Jessica, foge com Lorenzo e se torna cristã, ela é abraçada e aceita. O leitor descobre que seu “sangue” não tem mais em comum com o de Shylock do que o vinho tinto tem com o branco, o que indica uma perspectiva não racial com relação às diferenças entre cristãos e judeus.
Comparações Literárias
Para concluir, vamos comparar o personagem de Shylock com dois personagens igualmente avarentos das obras de Charles Dickens, um deles cristão e o outro judeu. Ebenezer Scrooge é uma figura tão central em A Christmas Carol [Um Conto de Natal] que não sentiríamos que a obra teria sido violada indevidamente se recebesse o novo título de “Scrooge”. Por outro lado, a figura de Fagin em Oliver Twist não é um personagem central, embora seja importante, o que tornaria absurda a mudança do título para “A Tragédia de Fagin”. Shylock tem mais em comum com Fagin do que Scrooge. Ele não é o personagem central da peça, nem está presente em nada além de um sentido periférico em dois dos três pontos focais da trama. Ele precisa ser colocado em seu lugar para que possamos ver a comédia que Shakespeare escreveu e não a farsa da tragédia que os críticos ergueram em seu lugar.
Autor
Joseph Pearce é professor visitante de literatura na Ave Maria University e membro visitante da Thomas More College of Liberal Arts (Merrimack, New Hampshire). Autor de mais de trinta livros, ele é editor da St. Austin Review, editor da série Ignatius Critical Editions, instrutor sênior da Homeschool Connections e colaborador sênior da Imaginative Conservative e da Crisis Magazine. Seu site pessoal é http://www.jpearce.co.