A genialidade de Joseph Pearce talvez só possa ser comparada à sua altíssima produtividade literária. Há autores que escrevem bem, outros que escrevem muito, mas atualmente ninguém escreve tanto e tão bem quanto este inglês radicado nos Estados Unidos. O autor possui um conhecimento vasto da literatura universal, com o qual ele nos brinda em uma coleção de artigos chamada “in a nutshell”, que em português pode ser traduzida como “em poucas palavras”. Nessa série Pearce nos entrega de forma concisa e cativante as chaves de leitura dos grandes clássicos literários. Todos aqueles que gostariam de ler a Ilíada, a Odisséia, a Divina Comédia ou Hamlet, por exemplo, certamente tirarão grande proveito das perspicazes palavras de Pearce.
Joseph Pearce, Crisis Magazine | Tradução: Equipe Instituto Newman
O canto da musa
Canta, ó Musa, a raiva de Aquiles e sua devastação…
e a vontade de Zeus que foi cumprida.
As linhas iniciais do épico de Homero, A Ilíada, dizem tudo. Nessas primeiras palavras, o poeta revela seu propósito bem como o significado mais profundo de sua obra.
Ele começa com uma oração à sua musa, a deusa da criatividade, pedindo a graça que precisa para contar a história de forma justa e honesta. Certamente, ao fazer isso, ele reconhece que a criatividade é uma dádiva dos deuses e que, sem a ajuda sobrenatural deles (sem a graça), o poeta ou artista não pode alcançar nada. Seu trabalho é, portanto, uma obra de piedade, bem como uma obra de poesia. Ele deseja dizer a verdade e busca a ajuda da intercessão divina para que possa fazê-lo.
Ficção ou fato
É claro que a verdade que ele pretende contar não é factual ou histórica, pois ele escreve sobre a lenda e sobre eventos que aconteceram vários séculos antes. Portanto, ele irá narrar seu épico usando a licença poética necessária para contar uma boa história, entrelaçando fatos e ficção em um tecido narrativo perfeito. Não, a verdade que ele pretende contar não é a verdade histórica (fatos), mas a verdade moral. Então, ele nos vai apresentar, de forma poderosa e dramática, uma importante lição moral, confrontando o homem com “seu reflexo no espelho” que, segundo Tolkien, é um dos principais objetivos dos contos de fadas.
Sobretudo, a moral que ele vai apresentar é que a raiva, fruto podre do orgulho, é destrutiva e tem consequências devastadoras, não apenas para Aquiles, o homem orgulhoso e cheio de ira, mas para inúmeras outras pessoas, vítimas inocentes do pecado de Aquiles. Assim, na tradução de Robert Fitzgerald, a raiva “condenada e ruinosa” de Aquiles “causou perdas amargas aos Aqueus e amontoou almas corajosas na desolação, deixando muitos homens mortos — carniça para cães e pássaros”.
As consequências do pecado
Portanto, o pecado não prejudica apenas o pecador; ele também prejudica inúmeras outras pessoas. Assim como ações têm consequências, ações ruins têm consequências ruins. Essa é a lição de Homero. No entanto, essa não é sua única lição. Esquecemos, por nossa conta e risco, que essa conexão entre comportamento imoral e destruição não é meramente fatalista, mas providencial. É, como Homero se esforça para salientar, “a vontade de Zeus que foi cumprida”.
Assim, à medida que a raiva de Aquiles se descontrola, passando por cima de sua razão tanto quanto passa por cima dos que estão ao seu lado (tanto seus amigos quanto inimigos), ele incorre na ira de Deus. Ao seguir sua própria paixão orgulhosa por vingança, em vez do caminho da virtude, Aquiles faz recair sobre si o julgamento de Zeus. Sua destruição, portanto, não é meramente o resultado de um destino cego, mas da providência divina.
Do politeísmo ao monoteísmo
Certamente, a teologia que sustenta o épico de Homero é pagã. No entanto é intrigante como o politeísmo de Homero parece estar desviando-se para uma direção monoteísta. O poder de Zeus não excede apenas o poder de todos os outros deuses individualmente, mas excede o poder de todos eles combinados. De tal forma que, quando Zeus faz essa afirma sua efetiva onipotência na assembleia dos deuses, nenhum deles o contradiz. É claro que isso não impede que os deuses conspirem contra a vontade de seu pai, contudo, apesar de seus esforços inúteis, é a vontade do senhor do trovão, e não a deles, que se realiza.
Além disso, há outros indícios da onisciência de Zeus. Em certo momento, Hera o seduz, fazendo com que durma, a fim de burlar sua vontade. Todavia, quando Zeus acorda, ele a informa de tudo o que aconteceria no futuro da guerra, e suas palavras proféticas se tornam realidade à medida que a história se desenrola. Ora, se ele conhece de fato o futuro, seu conhecimento não é limitado pelo tempo, mas o transcende.
A moralidade
Homero torna-se metafórico no penúltimo livro da epopeia, revelando sua moral abrangente nos eventos que envolvem o resultado controverso da corrida de bigas, cuja resolução demonstra uma magnanimidade de espírito completamente ausente nas ações da guerra. As disputas que surgem sobre as supostas ações imorais durante a corrida são análogas às ações imorais dos principais personagens da epopéia como um todo. Assim, a corrida serve, metaforicamente, como uma representação microcósmica da própria guerra.
A mensagem é bastante clara. Se Páris, Helena, Agamêmnon, Aquiles e outros tivessem esforçado-se para alcançar e pôr em prática o mesmo espírito honesto e magnânimo apresentado na resolução das disputas após a corrida, seria possível evitar a guerra e resolver as injustiças sem o ódio e o derramamento de sangue.
O fim de Aquiles
É curioso que A Ilíada não termine como começou, com o foco em Aquiles e sua raiva destrutiva e, em última análise, autodestrutiva. Essa teria sido a maneira simetricamente formal de concluir o épico. A ausência de um desfecho tão esperado deve-se, evidentemente, ao fato de Homero querer esvaziar o orgulho de Aquiles, terminando seu épico com uma ladainha de elogios ao “irrepreensível” Heitor. É o heroísmo da vítima inocente dos pecados alheios, como a luxuriosa fuga de Páris com Helena, e a odiosa raiva de Aquiles, que se exalta na conclusão da epopeia.
Ora, Homero não glorifica a guerra e muito menos o pecado que a causa ou o orgulho e a raiva que a alimentam. Ele glorifica o homem de coragem que — embora não seja livre de falhas e fraquezas — dá a vida por sua esposa, por sua família, e por seu povo.
O fim da Ilíada
Por fim, essa é a moral que Homero ensina. Ele não é cristão e o deus que adora não é o Deus cristão. No entanto, ele acredita que seus talentos como poeta são dons dados por Deus, a quem ele pede a graça de usá-los bem.
Em seguida, ele emprega esses dons para nos mostrar que os pecados do orgulho e da raiva nos destroem, assim como destroem os outros, Além disso, tais pecados não ficarão impunes por um Deus que ordena que os homens vivam virtuosamente. Ele é, portanto, um escritor da mais alta categoria que os cristãos e, de fato, todos os homens de boa vontade, devem se sentir à vontade para chamar de amigo e aliado.